Era então século XX, aproximadamente 1940. O apogeu das canoas de toldas no Baixo Rio São Francisco ainda florescia com intenso tráfego marítimo entre a praia e o Alto Sertão. Canoas como as conhecidas Toldas, Chatas e Boates usavam um só tipo de vela “pano” triangular de dimensões consideráveis que era e ficou conhecida como pano Coringa.
As Toldas faziam uma extensa rota comercial com cargas de todos os tipos. Eram por elas que o comércio das cidades de Gararu/SE, Pão de Açúcar/AL, Piranhas/Al, Poço Redondo, Porto da Folha, Traipu/AL, Propriá, Brejo Grande, Piaçabuçu e Neópoles com suas grandes ou pequenas feiras livres e também dos povoados ficavam abastecidos com mercadorias e novidades da moda que vinham de outras regiões do mundo afora. Mobiliários comprados nas cidades mais desenvolvidas como Penedo em Alagoas e Propriá em Sergipe eram embarcados e desembarcados. A economia florescia.
Uma carga, em especial, era a dos passageiros: empresários e comerciantes, caixeiros viajantes, homens do governo, políticos, religiosos, pessoas comuns, cangaceiros e soldados das volantes viveram essa época fazendo uso do transporte das canoas de tolda. Movidas pela força dos ventos uma viagem, de Propriá à Piranhas poderia ser rápida e levar apenas um dia, quando do vento bom a exemplo do mês de agosto, ou vários dias como no estado de calmaria e das chuvas dos meses de maio, passando por junho e julho. Vezes era que o viajante alugava uma montaria ou canoa a remo para adiantar e chegar mais rápido ao destino. A exigência de uma viagem mais rápida para a entrega de mercadorias e das pessoas se fez mais nítida. Era preciso inventar algo.
Mestre Pedro Jiquitaia vivia lá no Alto Sertão, nas terras distantes do Estado de Alagoas, no Povoado de Entre Montes onde o desenvolvimento tecnológico da época chegava com extrema lentidão. Era um exímio Mestre “Canoeiro” na arte de pilotar canoas de toldas. Conhecido por sua habilidade nas águas, em conhecer os ventos, as carreiras d´agua e responsabilidade no conduzir as canoas, ele também estudava o que fazer para melhorar a fluidez da viagem, muito embora seu conhecimento fosse empírico.
Mestre Pedro Jiquitaia vivia lá no Alto Sertão, nas terras distantes do Estado de Alagoas, no Povoado de Entre Montes onde o desenvolvimento tecnológico da época chegava com extrema lentidão. Era um exímio Mestre “Canoeiro” na arte de pilotar canoas de toldas. Conhecido por sua habilidade nas águas, em conhecer os ventos, as carreiras d´agua e responsabilidade no conduzir as canoas, ele também estudava o que fazer para melhorar a fluidez da viagem, muito embora seu conhecimento fosse empírico.
Adeval Marques entrevistando Everaldo Fernandes |
Já quase um idoso, Pedro Jiquitaia tinha uma ideia na cabeça, uma folha de papel à mão com um lápis grafite e fez os primeiros rabiscos. Começa com um traço na vertical, era o mastro; depois mais um traço na horizontal, eis a veja e em seguida outro traço na horizontal ascendente fazendo surgir a Veiga de cima. Acrescentou a posição em que ficariam os moitões, as cordas “escoltas” e os lugares exatos das carningas e das duas veigas. Por último acrescentou uma pequena bandeira no alto do mastro. Surgia assim o pano Traquete, desenhado especificamente para canoa de tolda. O seu surgimento revolucionaria a navegação no Baixo São Francisco. Ele substituiria os panos Coringas, porém, as canoas dos tipos Chatas e Boates continuariam ainda no mesmo jeito de velas.
A engenhosidade do Mestre Pedro Jiquitaia foi logo colocado em prática. Um protótipo do pano foi confeccionado e experimentado em uma canoa pequena e sua eficácia testada e aprovada. Dois grandes mastros foram montados de acordo com o desenho e medidas que Pedro estabeleceu. De frente ao Povoado Cajueiros/Sergipe, havia um grande banco de areia “coroa de areia” que foi usado por várias pessoas que, recrutadas, principalmente mulheres, para confeccionar e bordar o enorme pano de medidas – ainda em pesquisa – gigantescas que estava sendo montado. Bordado e costurado à mão, de forma artesanal. Terminado o trabalho foi colocado em uma canoa de tolda. Todos se admiraram com a beleza do novo.
Estado atual da canoa de tolda Itabajara no porto de Propriá. Foto: Adeval Marques |
Com a invenção ganhou-se mais rapidez nas viagens e, em 1940, a construção de canoas de tolda virou febre. Calcula-se que mais de 60 embarcações desse tipo circulavam no Baixo São Francisco. Todas registradas na Capitania dos Portos que fica na cidade de Penedo, Alagoas. A economia da região florescia. Era lucrativo possuir uma canoa de tolda e muitas embarcações foram encomendadas aos Mestres que as construíam, à exemplo de Cornélio Rodrigues Cruz, 83, do Povoado Jacaré, Sergipe e de Mestre Minervino Amorim, já falecido, da cidade de Propriá.
Everaldo Fernandes, Mestre Pedro Amorim
e Adeval Marques
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Já em 1960 uma novidade iria contribuir para a extinção das canoas de toldas: o motor a Diesel que fora colocado nas popas das canoas transformando-as em lanchas. Outro fator importante foi o desaquecimento da economia da região, a abertura de vendas de automóveis com financiamentos e logo surgiram os caminhões, o Governo abria estradas e com isso as mercadorias chegavam mais rápido do que se fossem transportadas através das canoas de toldas que eram movidas à vento e vela. O poder de competição dos veículos era avassalador e logo se viram proprietários de canoas migrando para caminhões. Várias foram as canoas que seguiram para o “rio de cima” e lá transformadas em lanchas à motor. As que ficaram no Baixo São Francisco também sofreram alguns processos dessa transformação sentindo o impacto da economia e foram vendidas para a região da praia em Penedo, Brejo Grande e Piaçabuçu. Lá eram retiradas suas lindas velas, a tolda e até mesmo seu nome de origem removido. O fim da canoa de tolda se deu de forma rápida, pois em menos de 20 anos, de 1960 a 1980, elas já estavam extintas tendo poucas em navegação. A última delas que figurou até meados de 1985, foi a imensa Itabajara, de Francisco Fernandes “Chico de Guilherme”, que foi vendida para a cidade de Penedo depois transformada em lancha à motor.
Mestre Pedro Amorim expõe desenho de barco
feito por ele. Foto: Adeval Marques |
O Mestre Pedro Jiquitaia foi um homem simples em vida que, pela necessidade e experiência adquirida na própria vivência da labuta, teve a feliz ideia de luz em tentar criar, de forma engenhosa, o pano Traquete sem nem se quer se dá conta de que estaria dando uma grande contribuição para o aperfeiçoamento das tecnologias da época. Não patenteou a criação e talvez tenha ganho muito pouco por isso, porém, a presente pesquisa e escrito vem de forma publica elogiar o homem e o feito e assim quem sabe, imortalizar para a História.
Adeval Marques em entrevistas com os Mestres Pedro Amorim e Cornélio. Foto: Adeval Marques |
É justo lembrar que o presente material foi todo escrito a partir do depoimento do Mestre Cornélio Rodrigues Cruz, do Povoado Jacaré, Município de Poço Redondo no Alto Sertão de Sergipe no dia 18 de janeiro de 2015 em sua residência. Cornélio Rodrigues foi aprendiz de Carpinteiro Naval, passou a Oficial de Carpintaria e depois à Mestre. Foi construtor de diversas canoas de tipos vários. Trabalhou com Mestres como Pedro Roberto, do Cajueiro, que ele considera dos melhores e o próprio Pedro de Jiquitaia, onde presenciou o feito aqui relatado. Como citação e exemplo de uma de suas criações está a canoa Vera Núbia da cidade de São Bráz/Alagoas, que era de propriedade de Arlindo Dias e foi eleita, na época, como uma das mais rápidas e elas que já navegaram no Baixo São Francisco.
Sobre a construção da canoa de tolda Vera Núbia será outra página da qual já estamos preparando também a partir do colhimento de depoimentos do Mestre Cornélio Rodrigues Cruz.
Adeval Marques
Estudante de História/Licenciatura, pela Universidade UNIT – 6º Período
*Carreiras: São os corredores por onde as canoas podiam andar com segurança sem o receio de encalhar em bancos de areia. São considerados os lugares apropriados e de maior profundidade para o navegar das embarcações.
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