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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

A canoa de tolda Vila Rica e a chegada dos Marques-Fernandes em Propriá - Parte I


Quando eu era criança me lembro bem de meu pai sentado a noite conversando com minha mãe e minha avó olhando para o claro da lua lembrando do saudoso sertão que eles deixaram em busca da cidade grande (Propriá) para ter e dar dias melhores aos seus filhos. Reconstruo aqui parte da saga de minha família ao deixarem seu torrão natal e irem à cidade grande para não mais voltarem. A migração do povo sertanejo nunca foi fácil.

A canoa de tolda Vila Rica e a chegada dos Marques-Fernandes em Propriá

Era janeiro de 1971. Um dia de quarta-feira na cidade de Piranhas Estado de Alagoas, dia de feira. Já por volta das 14:30hs a maioria das canoas que seguiriam viajem para outras cidades já se encontravam carregadas e com os panos hasteados ou a meio mastro, prontas para descer rio abaixo. 


Eram canoas de vários tipos: chatas, pequenos barcos de cargas, botes, canoas de pescarias, vapores e as canoas de tolda. Uma infinidade de embarcações com destino a todos os lugares do Baixo São Francisco que à cidade de Piranhas vinham todas as quartas-feiras por ocasião da grande feira que abastecia o sertão de Sergipe e Alagoas. 


Olhando do porto, à beira do rio, percebia-se a agitação do povo principiando o fim da feira. Vozes em profusão, aqui e acolá um grito de alguém a procura de outro, um latido de cachorro disputando um osso deixado em meio à rua, homens com sacos nas costas descendo à ladeira em direção as canoas, correria de todos os lados. O fim da feira havia chegado para os donos das canoas. Era hora de partir em viagem mais uma vez. 



Em meio a isso tudo estava Zé do Baié. Um velho canoeiro com mais de sessenta anos de idade. Quase totalmente calvo, de cor moreno claro puxando para bem bronzeado. Tinha estatura mediana e seu corpo era atarracado. Mesmo sem a jovialidade ainda era homem forte e com boa saúde, não fosse pelo mal de Parkinson que contraíra recentemente. Seu patrimônio maior, e de grande amor, era sua canoa chamada de “Vila Rica”, a qual adquirira com muito esforço, trabalho, dedicação, muita luta árdua e exaustiva. 

A verdade é que a canoa Vila Rica era bem grande. Tinha quase sessenta anos de vida. Havia pertencido a outros canoeiros comerciantes e Zé do Baié era o terceiro proprietário. Com poucas condições para fazer as devidas manutenções necessárias na canoa em toda nau, Zé do Baié já tinha a disposição física da sua jovialidade dos seus quarenta anos. O estado da nau não era dos melhores. O costado de bombordo (lado esquerdo) precisa ser trocado em três tábuas de locais diferentes; o cavername estava também avariado e muitas cavernas precisavam ser substituídas; a verga de proa encontrava-se emendada com flandres, amarada de arame e alguns pregos; os panos de popa e proa amarelos encontravam-se em péssimo estado. A situação da canoa era tão ruim que, ao fazer uso da manobra de bordo, ouvia-se um verdadeiro ranger de madeira que dava medo a quem não tinha costume de nela fazer viagem. Nessa manobra a canoa parecia se desconjuntar toda e provocava, por quem a tivesse observando de uma das margens do rio, a imagem de uma cobra fazendo sua volta em plena visão de borracha.

Outra situação que a canoa passava era a necessidade de ser calafetada em vários lugares, também havia a necessidade de se trocar algumas tábuas do fundo e por isso ela "tomava" grande quantidade de água e sempre havia a necessidade de alguém para lhe retirar a água. 

Entrava água em abundância pelas tábuas frágeis e podres que precisavam ser trocadas. O canoeiro, proprietário ou quem mais fosse a bordo, tinha sempre a precaução de retirar a água e sempre constantemente, pois uma das peças chamadas de rombo mestre, situado na proa da canoa, deixava entrar água em profusão. O estado da canoa Vila Rica não era dos melhores. Estava muito avariada devido ao tempo de uso nas tantas idas e vindas das viagens por transportar vidas e mercadorias no Baixo São Francisco. Dando contribuição, fazendo e escrevendo e História. Mesmo avariada era forte, resistente e confiável. 

No estado em que estava a canoa não podia ser conduzida em marcha rápida e os panos deveriam ser sempre frouxados para evitar que entrasse mais água rapidamente e assim a exposição do perigo seria menor. Com o peso da carga a canoa entrava mais água, se retorcia com mais força, poderia romper e quebrar as vergas e os panos rasgar-se-iam ao meio. Se demorasse muito a ser feito o serviço ela poderia não suportar por muito tempo e, se no percurso de uma viagem qualquer, ela fosse acometida de forte temporal, afundar-se-ia como aconteceu com tantas outras. 

Naquela quarta-feira de janeiro de 1971 a canoa Vila Rica sarpou de Piranhas com vento forte e já bastante carregada com madeira, sacos e outras pequenas cargas com destino à cidade de Propriá. Era mais um desafio na história de vida da canoa. 

No comando do leme estava um experiente canoeiro por nome de Daniel Fernandes, irmão do experiente canoeiro Janjão Fernandes. Daniel ajudaria à Zé do Baié por ocasião de que sua nora, Maria Marques, estava indo em mudança para a cidade de Propriá onde o filho de Daniel, Nildomar Fernandes, a aguardava como novo local de sua residência. Dariam porto no povoado de Cajueiros, Sergipe, onde Maria Marques já os aguardava com sua pequena mudança, três pequenos filhos, que eram netos de Daniel Fernandes. A canoa, no estado avariado em que se encontrava, carregava muitas mercadorias e agora levaria também outras vidas humanas. A habilidade e experiência dos mestres canoeiros teria que ser redobrada devido à responsabilidade que estavam transportando na nau. Mestres canoeiros, homens de valor inestimável, verdadeiros heróis esquecidos na História. 

A Vila Rica zarpou de Piranhas por volta das 14:40hs e saiu bordejando por entre o canal de pedras já bem coberto pelas águas, contudo, todo cuidado era pouco, pois as pedras não estavam tão profundas e o fundo da canoa poderia bater em uma delas e o destino ser fatal. A atenção e cuidados requeriam ser dobrados. Daniel Fernandes era auxiliado por Zé do Baié que tomava outras providências para uma viagem com menos problemas. Uma viagem longa e de mutas léguas. 

Bordejando de um lado para o outro a nau foi sumindo da visão de quem estava no porto a observá-la, descendo o rio sem muita pressa típica delas, ajudada pela forte correnteza do rio São Francisco que ajudava garantindo o impulso para descer suavemente as sua águas, as águas do velho Opara.

Zé do Baié retirava água sem parar e percebeu o quanto de dificultosa e penosa seria a viagem para ele naquela idade já avançada para esse tipo de esforço físico. Os canoeiros eram verdadeiros titãs das águas. 

Além das mercadorias que seriam transportados para os locais ribeirinhos rio abaixo, também levavam uma pequena família que iriam residir em Propriá e que não mais voltariam ao Sertão. Eles eram os Marques-Fernandes.

Continua na parte II


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